Pensamenteando

Tempos modernos

🚨🐲 🎃

Os Adoradores Fátuos do Fogo ficaram surpresos com a chegada do dragão. Era um animal gigante, cheio de brilhantes escamas por todo o corpo, olhos dourados, com finas pupilas negras e um focinho um tanto avermelhado. O bater de suas asas fazia os telhados das casas revoarem, apesar do aparente esforço da criatura.

Aquela figura enorme que foi chegando, voando rente ao horizonte, causando tamanha comoção, não poderia ter sido mais decepcionante. Soltava uma fumaça fina e tremida pelo focinho, tinha espasmos em que jogava a cabeça para trás e emitia um ruído estremecedor que abalava as estruturas – as emocionais dos moradores do vilarejo, e as estruturais, das casas. Era assim o espirro de um dragão.

Os adoradores, decididos a fazer o que melhor sabiam – puxar saco –, ficaram ajoelhados em um semicírculo diante da besta, segurando bem alto, com braços trêmulos, os mais variados presentes de última hora que conseguiram encontrar.

Em uma tentativa de ostentação não planejada, fizeram uma pequena procissão, caminhando devagar, sérios, com um movimento fluido, cometido e reverente. Um de cada vez, iam em direção a besta com esse arrastar dançado de quem avança um pé e se esforça para fazer o outro seguir. Ao chegarem a uma distância que não podia realmente ser considerada segura, mas, pelo menos, respeitosa o suficiente para não demonstrar pavor, depositaram as oferendas para a avaliação do visitante alado.

O dragão revirava os olhos e não prestava muita atenção naquela formalidade. Estava ali a trabalho, mesmo com aquela dor de garganta importuna que acabou se agravando até se tornar uma gripe, ou como desconfiava, ataque de rinite dracônico. Ele tinha esse pensamentozinho escondido no fundo da mente – que não ousava comentar com os demais dragões –, de que era alérgico a fogo. Era tiro e queda, sempre que começava a discutir sobre política, acabava perdendo as estribeiras, e literalmente, cuspia chamas pela boca. Acontece que no dia seguinte a garganta estava toda seca, com uma sensação de queimado e doía muito engolir qualquer coisa, ficando sempre com aquele gosto metálico no fundo, mesmo se não estivesse comendo um soldado com armadura – o que ele evitava fazer.

E naquele dia não podia faltar ao trabalho, porque o sindicato dos seres mágicos disse que seu emprego estava por um triz. A demanda por dragões estava baixa e poucas pessoas ainda se davam ao trabalho de fazer os rituais como deveriam ser feitos, e os dragões, criaturas orgulhosas, não eram muito bons em se adaptar às mudanças da modernidade. Mais de um havia sido demitido recentemente, tendo que apelar para trabalhos que não envolviam serem reverenciados.

Por isso ele assistia aqueles fanáticos meio birutas que adoravam um ser que podia destruí-los por prazer, maldade ou acidente. O que ele não esperava aquele dia era que fosse receber uma oferenda decente.

Um dos integrantes mais novos –, que havia acabado ali depois de uma viagem no tempo mal sucedida –, se aproximou e mostrou para a besta uma seringa que parecia conter um líquido leitoso e brilhante.

– De onde eu venho, ó poderosa criatura, chamamos essa solução de BENZETACIL. Eu tomei a liberdade de melhorá-la com um pouco de magia para satisfazer vossas necessidades!

Ao terminar o discurso, ele fez um gesto que queria demonstrar que o tamanho da besta era um ponto importante no que dizia. O dragão, que tinha lá seus problemas com o próprio corpo, espreitou os olhos para o mamífero quixotesco e fora de forma, mas não disse nada; ele já ouvira falar sobre os efeitos do poderoso composto em fóruns de discussão dracônicos – onde usava um nick anônimo e procurava saber as novidades sobre os tratamentos da moléstia sem fim, a que chamavam de rinite.

O ofertante continuou:

– Eu só preciso aplicar o BENZETACIL em vossa parte sem escamas, ó majestade alada. Se vossa excelência permitir, é claro.

O dragão, tomado de um desejo ardente de acabar com aquelas incômodas fungações, de se ver livre da pinicação no nariz que o fazia se ferir quando acabava o coçando com suas garras, de poder finalmente respirar em paz, não pensou muito a respeito, e por um momento, pareceu que até abanou a cauda cheia de espinhos.

O lagarto se virou esperançoso, ficando com a barriga para cima e a cauda encolhida ao seu lado. As perigosas patas dianteiras ficaram dobradas junto ao tórax, enquanto que as traseiras estavam escancaradas em direção ao céu. A cena era estranhamente fofa, como se o dragão esperasse que alguém lhe acariciasse a barriga e dissesse que sim, ele era um bom dragão. E lhe tacasse a bolinha em seguida.

O adorador se aproximou de cabeça em pé, os cabelos farfalhando ao vento.

Acontece que nesse exato momento, um segundo dragão, vermelho como o focinho do primeiro, aterrissou próximo da cena com seus olhos apertados e estreitos.

O novo ser alado era um auditor do sindicato de seres mágicos – órgão responsável por enviar a criatura inicial até lá. Ele estava realizando uma inspeção surpresa para a empresa que oferecia o aluguel de dragões. A história oficial, emitida em um boletim no dia seguinte, relatava que mais um ser mágico é desligado por "atitudes não profissionais no ambiente de trabalho, que transmitem uma imagem que não está alinhada aos princípios e a visão da empresa".

Nosso amigo ficou sem trabalho, mas continuou com a rinite.

Hoje trabalha como moderador nos fóruns dracônicos que lutam contra as fake news. Odeia trolls.