Pensamenteando

Quem canta seus males espanta

🚨🐲 🎃

A história a seguir pode ou não ter acontecido mais ou menos assim.

Um grupo de amigos estava reunido no apartamento de um deles, em roda, com um violão, sem bebidas alcóolicas, em dois mil e dezenove. Sim, era uma célula.

Eles tentavam se lembrar, em meio a risadas comportadas, como era a música que o pastor ensinou. O rapaz que tocava violão havia sido convertido recentemente e por isso ainda estava aprendendo as notas. Ele olhava com frequência para a garota com casaquinho cinza e saia jeans. Ela notava a atenção, mas usava sua energia para disfarçar,e assim, poder tocar o rapaz ao seu lado de forma cristã. Ela soltava comentários que ensaiava em casa, que davam a entender, mas não davam na cara. Os demais, realmente estavam lá para louvar.

O que eles não esperavam, era que a combinação de: lua cheia, meia luz, velas, roda e cantigas, era uma receita milenar de invocação.

E naquela noite, alguém, muito longe, estava ouvindo.

Com a típica exigência religiosa por perfeição harmônica e a pouca tolerância humana, o grupo demandava, com aquele tom de voz educado mas incisivo, que a nota estava errada.

O violeiro recém-convertido, com o rosto contraído, suava de nervoso, tentando acertar de ouvido. Errou a primeira tentativa e estragou a segunda em uma confusão estridente de fá para dó. Suspirou fundo, quase quebrando o braço do violão com seu aperto, e encolheu a cabeça ao ser trovejado de reclamações.

Parecia próximo de desistir, mas olhou para a garota de casaquinho cinza, e aquele rosto sem maquiagem fez seu coração parar um instante. Estando ele em uma idade em que ataques cardíacos são improváveis, tomou aquilo por amor.

Fechou os olhos, e enquanto metade da mente pensava nos dois se pegando no sofá, a outra atiçava o raciocínio, e seja por sorte – o que é provável –, ou providência divina – o que muitos ali concordariam –, ele acertou a nota que faltava. E foi aí que aconteceu.

O grupo entoava em uma só voz o antigo cântico, com uma harmonia que não acontecia nesse mundo desde os tempos de Salomão. Aquelas palavras de "Vem reinar, em mim, senhor", com vogais tão abertas, de uma energia tão intensa, soavam pelo ambiente. E os envolvidos, com os olhos apertados e as bocas escancaradas – como se esperassem uma possessão espiritual –, soltaram uma exasperação de surpresa ao ver no centro do círculo um demônio.

Nenhuma luz piscou, não houve barulho de estática, cheiro de enxofre ou vidros se quebrando. Há muito tempo eles haviam dominado os eletrônicos e essa coisa de mudança de plano era prática, como várias outras na vida – inclusive as imortais – e a queda no número de exorcistas de todo tipo de prática religiosa facilitou o processo. É muito mais fácil vender isso de "tentativa e erro", quando "erro" não se traduz diretamente para aniquilamento imaterial.

Mesmo assim, se materializar no centro de um círculo de adoradores têm suas consequências. A primeira delas, claro, é o susto. Poucos realmente esperam que aquilo ali vá funcionar. Por isso mesmo, os adolescentes soltaram a afinação. Um caiu do braço do sofá, onde estava sentado até então porque achava que era legal, três amigas que cantavam de mãos dados, sentadas em cima do joelho e balançando como um barco a deriva soltaram um grito estridente e incômodo.

O demônio, que esperava uma recepção mais calorosa, levou as mãos às orelhas:

— Ei, ei, ei! O que é isso?! Vocês me chamaram aqui para ficar gritando??

O visitante havia tomado a forma de um ser humano que parecia trabalhar no RH de alguma empresa familiar, e ficou ali, com aquela expressão lânguida. Ninguém respondeu.

O primeiro a se recuperar do choque foi o rapaz do violão, que avançou até ele como se fosse dar um soco no tio do RH.

— Ei, vagabundo, como entrou aqui?! Pode vazar agora ou dou na tua cara!

— Mas Felipe – começou o visitante – vocês me chamaram! Não é legal fazer um círculo de invocação se só querem passar um trote!

O garoto ficou imóvel ao ouvir seu nome ser pronunciado naquela voz rouca, com um timbre tão profundo, que em nada combinava com o rosto apagado de quem falava. Com um gesto, o demônio fez o garoto retroceder e se sentar. Ele então andou ao redor dos jovens como um advogado que tinha uma causa ganha, e só esperava a sentença do juiz – que ele, claro, havia comprado.

A garota do casaquinho cinza tomou a frente.

— Nós não fizemos nenhum círculo de invocação! Nessa casa nós adoramos ao Senhor!

O demônio então soltou uma gargalhada ribombante e macabra, que pareceu puxar o ar diretamente de dentro dos pulmões dos outros.

— Mas é isso que vocês nunca entendem! As canções são as mesmas. Pare um dia para ouvir e me diga se não parece estranho ficar com essa energia toda pedindo para "ocupar todo o meu ser." Desde que o mundo é mundo nós batalhamos pela adoração, o outro grupo só teve um marketing melhor. Essa sacada do filho foi realmente boa. O chefe lá embaixo adora essa parte, inclusive… Enfim, se vocês não me querem aqui, eu vou embora.

E ao dizer isso, ele encarou lentamente cada um dos presentes com seus olhos ,que de um momento para o outro, tomaram a forma de chamas negras. Um a um, eles desmaiaram. Quando todos jaziam no chão, o visitante esfregou as mãos, abriu um sorriso, e desapareceu.

Os envolvidos não conversaram a respeito, tomaram aquele dia como uma histeria coletiva. Pouco a pouco, eles foram saindo da célula. As desculpas eram várias, falta de tempo, mudança de endereço, algum parente doente etc.... Engana-se porém quem acredita que a fé deles diminui. Muitos inclusive são devotos mais fervorosos agora, mas é verdade que ela mudou. Hoje, fazem parte da igreja satânica e se reúnem para invocar demônios toda lua cheia. Nenhum aparece.