Pensamenteando

O Hospital

Minha mãe está sendo operada. Eu aguardo o fim do procedimento em um quarto do hospital. Entra um pedaço de sol tímido pela janela – que considero um abraço companheiro – e ajuda a iluminar as paredes baixas. No quarto ao lado, um homem discute acaloradamente com sua respectiva genitora sobre decisões do governo. Ele se exalta em alguns momentos.

— A culpa não é sua mãe, mas da sociedade filha da puta em que vivemos!

— Não tem jeito meu filho, as coisas são assim mesmo.

Ela diz isso como quem tem um terço em mãos e já viu muito da vida. O filho, alheio a resposta, esbraveja que o governo aprovou pesticidas que são proibidos no mundo todo. E explica:

— Isso é porque o mundo se preocupa com a vida. O Brasil é o país da morte.

O peso da frase se junta ao silêncio que parece comprimir meus pensamentos tumultuados. Saio calado para dar uma volta. O hospital não tem longos corredores brancos. As paredes são de tons pastéis rosa e verde. Seu piso é de mosaico beges com detalhes pretos, e reflete a iluminação uniforme e contida que as várias lâmpadas, igualmente distribuídas, emanam. Uma luz fria e insensível.

Poucas pessoas estão no espaço comum. Funcionários apressados esperam o elevador que não chega. Um casal caminha de braços dados. Ela o guia pelo hexágono para darem uma volta lenta ao redor do andar. Terminam a primeira. Começam a segunda. Na metade, alcançam uma senhora mais velha que haviam ultrapassado anteriormente. Acontece um certo desentendimento entre as duas mulheres. O senhor se mantém calado, os olhos vidrados em algum outro lugar. Ele parece ter a idade do meu pai. Afasto o olhar.

Volto para o quarto. Devagar, me sento outra vez na cadeira. Lá fora, no térreo, alguém começa a tocar o piano preto de cauda. A melodia vai subindo pelos andares, afastando o vazio. Ao entrar, toma conta do meu estômago gelado primeiro. Dita o ritmo para as borboletas. Respiro fundo o ar silencioso e sinto um arrepio na coluna. Os acordes de "Wave" me apaziguam um pouco, soando como aquele Brasil que se perdeu.

Penso em sair e ver quem está tocando, mas algo me impede. Afinal, acabei de entrar. No quarto ao lado, o filho desobedece a mãe, que pede com a voz falha, para não falarem mais sobre o assunto. Ele retruca com um tom de indignação:

— A senhora não cansa de defender gente má?!

A senhora parece querer deixar aquela discussão de lado.

— Você está confundindo as coisas. Ao dizer isso, provavelmente afasta o olhar para a janela, onde o céu é pacífico, e fecha os olhos com a leveza da alma. O filho, que não parece se dar por convencido, joga suas últimas palavras, que soam um pouco rancorosas:

— É a senhora que está invertendo as coisas.

Os acordes do piano mudam. Ficam mais violentos. Agitam as borboletas. Balanço a cabeça de súbito, afastando os pensamentos, e saio em um impulso para ver quem é o responsável pela música.

Ele é um rapaz de blusa branca e coluna ereta. Um acorde mais forte ressoa e o pianista, vagarosamente, retira as mãos do teclado, se levanta em câmera lenta, e remove a partitura do piano. Fico contente que ao menos cheguei a vê-lo. Ele não se vai. Dobra com cuidado o papel que está a sua frente, o coloca de lado em uma pilha, e retira outro, que estende diante de si. Recomeça, mas agora usa apenas a mão esquerda.

Uma ou outra pessoa pode ser vista apoiada no parapeito que dá para o vão central, onde é possível observar os andares abaixo. Todas estão no celular. Todas distraídas, tão distantes dos meus medos. No térreo, um casal discute, sentado de costas para o pianista. Um menino leva o videogame ao rosto, como se quisesse entrar para dentro do jogo. Funcionários ocupados passam de um lado ao outro. Só eu pareço prestar atenção, e esse pensamento bobo e egoísta, me faz abrir um sorriso. Solto o ar, devagar, e tento apreciar os acordes.

A música continua, mas agora está misturada ao burburinho que também escalou os andares. Soa pior. Já não tem a pureza do protagonismo. Volto a entrar.

O vazio do quarto, ou a porta fechada, servem de filtro. Aqui dentro, a melodia tem graça outra vez, mas meu estômago não acha o mesmo. Está bagunçado. Têm fome. Fico um pouco indignado comigo mesmo. Fome, em uma hora dessas? Lembro que trouxe uma barrinha de cereal. Começo a mastigar a gororoba e bebo um pouco de água fria, que sinto empurrar o caminho pela garganta.

Me jogo cansado na cadeira, solto um suspiro, cruzo os braços e fecho os olhos. Fico assim um tempo, até que acordo dos devaneios. No quarto ao lado, o filho grita com a mãe. Não entendo o que ele diz. Há uma movimentação estranha. Eu dormi? Estava sonhando? Não, não dormi. É o choque. Agora entendi o que ele disse.

O fuzuê continua. Parece que algumas enfermeiras entram em disparada no quarto.

— Vamos ter que levá-la para a UTI.

O filho chama a mãe com uma voz cortada. Não sei se ela responde. As borboletas estão agitadas. Parecem roubar o calor do meu corpo. Escuto a porta bater.

Silêncio.

Não me atrevo a sair para ver. Fico parado. Ali, imóvel, penso na minha própria mãe. Já era hora dela chegar. Não era? Passou da hora até. Ando acelerado de um lado a outro. Repasso atitudes do passado. Faço promessas e notas mentais.

Escuto um lamúrio escapado vindo do quarto ao lado que me gela a alma. Vou me aproximando da parede sem vida e colo a orelha esquerda à ela. O choro passa de lá para cá.

As enfermeiras voltam e dão a notícia, ou acho que o fazem. Escuto o filho gritar que é mentira. Que precisa ver a mãe. Penso na minha. Engulo em seco.

De súbito, o enfermeiro que levou minha mãe embora entra no quarto. Está de cabeça baixa. Me pergunta se sou o acompanhante sem me olhar diretamente. Aceno com a cabeça, débil, e tento dizer que sim, mas a voz soa rouca. Limpo a garganta. Ele revisa algo na prancheta e sai antes que eu pudesse falar qualquer coisa.

Ela chega pouco depois, ainda meio grogue da anestesia. Eu a abraço e recebo um olhar de estranhamento. Ela não diz nada.

Eu também não.