Pensamenteando

O elevador divino

Você entende que se o edifício não fosse tão católico eu não me puniria. Começava pelo nome: “Santa Maria”, mas até aí tudo bem, deve existir até refrigerante com nome de santa. Acontece que a fé do imóvel foi além do seu batismo, e me colocou a prova em uma quinta-feira cheia de mormaço.

No extenso hall de entrada, com seu frio piso de igreja, ficava o nicho com três anjinhos e a vela elétrica de luz vermelha. Tinha um local de honra entre os dois elevadores, bem acima do mundano quadro de avisos. Os querubins pareciam eternos na sua vigília e transmitiam uma estabilidade que faltava em minha vida, além de deixar claro: mesmo que vocês — condôminos pecadores que se recusam a frequentar o grupo de orações — não estejam interessados na proteção do Senhor, ela é sua — mesmo você, rapazinho do 333.

Eu tinha um pequeno carinho por aquele nicho, que julgava um recanto de outros tempos, mas um enorme pavor do grupo de orações – que de acordo com o anúncio, este edifício realiza rigorosamente, há vinte e dois anos. O fervor religioso dos participantes me incomodava. Me lembrei disso no dia em que vi piscar a (até então) invariável e fiel vela vermelha, e temi.

Fui criado na igreja católica, onde me instruíram, sem muitas explicações: aquela luzinha vermelha no fundo da igreja significa que Deus está presente. Ao ouvir isso, o materialismo da frase baixou em mim, convertendo as dúvidas que tinha na tal figura esotérica e imaterial, para a clara, maciça, e elétrica crença na imagem da lampadazinha. No meu interior, com um misticismo inegável, troquei a pergunta "quem apaga a luz da geladeira?" pelo enigmático: “Para onde vai papai do céu quando acaba a luz na rua toda!? ou pior: quem vem?”

Então você entende, que naquela quinta-feira cheia de mormaço, em que neguei o sinal enviado via código morse pelo santo nicho, onde me encontrei preso dentro de um elevador trêmulo, ouvindo as espectrais vozes que diziam, sem deixar dúvidas, que se eu ficasse parado iriam conseguir me pegar, com aquela caixa metálica caindo em meio às trevas do meu coração até as portas abrirem em uma sombra cor de sangue, e eu me encontrar perdido na selva escura do hall de entrada, com Seu Virgílio, o porteiro, me tocando o ombro com sua mão esquelética e confirmando que sim, conseguiram me pegar, “graças a Deus”, você entende que eu temi.

Não fosse por tudo isso eu não me esquivaria religiosamente do salão de festas toda segunda-feira, evitando o grupo de oração, e subiria as escadas, de cabeça baixa e em silêncio, cumprindo minha racional penitência. Você entende.