Pensamenteando

O casaco gauche

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Eu sou uma pessoa avoada, mas até sei reconhecer uma boa oferta. Quando fui para Londres a trabalho, precisei comprar um casaco que aguentasse o frio da Inglaterra, e me deixasse responsável por só lidar com o gelo dos ingleses, sem aquela tremedeira toda do primeiro dia, quando eu me uni ao happy hour – que era obrigatório –, sem saber que os desalmados ficavam ao relento, em frente ao pub, naquelas ruas cinzentas dos dias curtos de inverno.

Mas meu casaco de etiqueta vermelha, com setenta por cento de desconto, mudou tudo. Sim, setenta por cento! Ele me abraçava e impedia a chuva de passar com aquele aconchego impermeável. Dei sorte de ir a uma loja gigante, dessas de departamento, que estava fechando para sempre. Veio com cabide de madeira e tudo, o que eu incluí na conversão de libras para reais – que era bastante imparcial.

Acontece que o casaco era só metade da história: eu, com meu inglês de verbo to be, me comunicava mais com mímicas, e tinha muita dificuldade de entender aquele sotaque de filme cult. Qualquer interação social envolvia: começar a traduzir as palavras na mente, responder de imediato para não parecer burro, terminar a tradução, entender que falei bobagem, tentar explicar, e repetir tudo de novo.

Costumava ir embora com os miolos fundidos. Um dia, fui até a recepção, onde as pessoas deixavam os elegantes sobretudos – atitude que eu achava muitíssimo londrina, porque ninguém parecia ter medo de perder o seu –, coloquei meu casaco, e fui embora com o coração sendo salgado por aquelas bolinhas azuis que eles espalhavam para derreter a neve do chão, sem sentir aquele abraço de sempre.

Algo estava errado.

Fui remexendo nos bolsos de fora – que eu nunca usava – e achei um papelzinho amassado com um poema do Drummond: "Mundo mundo vasto mundo / se eu me chamasse raimundo / seria uma rima, não seria uma solução". Não me lembrava de ter escrito aquilo, e a letra, tão diferente da minha, aumentou minhas suspeitas, mas foi só a moça que me cutucou o ombro e falou abrindo muito a boca, "My coat, my coat", quem me confirmou a suposição de que aquele casaco não era o meu.

Recuperado do choque que o poema me deu – o itabirano sempre toca lá no fundo –, e da vergonha de ter subtraído patrimônio alheio, me dei conta de que ela devia saber português, e mais, que era fã do Drummond! Meu coração se encheu de alegria de finalmente soltar um ditongo ululante, e me vingar daqueles phrasal verbs malditos. Por isso, emendei junto dos meus vários "sorry, sorry" com "erres" pronunciados, um sorriso aberto, e abri minhas vogais lusófonas em um audível e acusatório: "Você é brasileira!!!!!"

Não era.

Pelo que eu entendi, Wendy era uma das poucas londrinas que ainda viviam em Londres, e aquele papelzinho estava perdido no casaco dela há alguns anos, quando um turista brazuca a convenceu que estava escrevendo um poema feito especialmente para ela, bem ali na barra do pub. Pode parecer estranho, mas eu achei um impropério o rapaz atacar de Drummond e não de Chico nessa hora. Até então essa havia sido minha única indignação.

Wendy, inglesa que só, ainda me pediu desculpas pela confusão, e até soltou um sorriso amarelo ao explicar que comprou o casaco na mesma liquidação, dois anos atrás, quando a loja iniciou a tradição de vender todo o estoque como se estivesse fechando, mas que era só um jogo de palavras do capitalismo selvagem. No final, ela me deixou ficar com o papelzinho, ou só esqueceu mesmo, e eu o guardei todo amassado, igual antes, em um dos bolsos.

E fiz o que podia fazer: dei um sorriso inglês, e fui embora com meu casaco, que desde então já não é tão confortável assim, mas é bem poético.