Pensamenteando

O canto das flores

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No final de Setembro, os Ipês de Seu Geraldo soltaram suas lágrimas floridas. Foi ele quem os plantou, quando ainda era menininho. Naquela época, o terreno em frente à sua casa não era uma praça, mas como gostava de dizer, puro mato. Demorou muito para que outras pessoas construíssem ao redor. Era chamado de Juninho (porque toda história precisa de Juninho), e ele aprontava todas.

Mas não é hora de falar de Seu Geraldo quando criança. Há apenas um acontecimento dessa fase de sua vida que nos importa: quando ele saiu junto de sua turma para matar passarinho. Nunca foi muito fã da atividade, mas acabava indo junto por comodismo ou o que quer que isso se chame quando se tem sete anos. Falta de opção, imagino. Chegando lá, viu um pássaro pretinho que só. Era lindo, com suas penas que brilhavam como uma noite sem estrelas. Saltitava em um galho alto, tão longe, mas ainda tão atingível. Juninho, temendo por seu novo amigo, tomou a primeira iniciativa do dia: colocou uma pedra no estilingue, mirou bem e soltou o elástico que zuniu a tarde ensolarada (ou só a orelha dele). O pedaço de cascalho ricocheteou no galho, que deixou cair alguma coisa da ponta, e errou feio o passarinho, que saiu voando sem nem agradecer. As outras crianças, sentindo-se ludibriadas, ralharam com ele, que gargalhou e saiu correndo para perto da árvore. Chegou lá quase saltitando, ainda sorrindo, e apanhou do chão aquela coisa estranha que a árvore jogou fora. Um negócio engraçado que parecia um rabo esverdeado. Levou o tesouro de volta com ele. E claro, a mãe mandou o menino parar de inventar bobagens e jogar aquela coisa estranha fora. Ele obedeceu, mesmo que contrariado com a injustiça materna. Foi até a área em frente, onde cavou um buraco redondo, não muito fundo, sujando as mãos com aquela terra marrom e fofa até chegar na parte mais escura, preta igual ao passarinho, e colocou seu tesouro lá dentro. Soltou um gemido assustado quando tentou empurrar um pouco mais e o rabo se rompeu. Puxou então o seu segredo com os olhos esbugalhados. Dentro, várias pétalas brancas com bege se soltaram, e ele olhou com admiração algumas deslizarem pelo ar até o chão naquela dança rodopiada. A mãe o chamou de volta e ele foi correndo, mas antes guardou tudo ali naquele buraco e escondeu para ninguém mais achar. Naquela noite, uma chuva leve abraçou a terra e os sonhos de Geraldo. O tempo foi passando e a semente virou muda, que foi crescendo, amarrando as raízes, solidificando. A família de Geraldo também foi fazendo ali seus alicerces. Quando a árvore ficou do seu tamanho, Geraldo já estava acostumado a visitá-la e conversar. Desejava que ela se tornasse grande como a outra, e atraísse passarinhos pretos. Ao ficar mais velho, plantou outras mudas pela região. Ipês de outras cores, pois já sabia identificá-los. Também fez germinar por ali um Jacarandá-mimoso, pois a mãe dizia que era seu preferido, e uma jaqueira. Geraldo ansiava por lamber os dedos depois de comer os frutos de uma árvore que ele mesmo plantou. Sua neta também puxou esse gosto, que acabou pulando uma geração, e certo dia, muitos anos depois, cozinhou para o avô carnívoro um hambúrguer de jaca que o enganou direitinho, e a família toda riu. Já haviam se passado alguns anos desde que aquele terreno se transformou em uma praça. O local que antes era “tudo mato” recebeu outras casas, uma vizinhança, que evoluiu, cresceu, mudou e ficou estranha para aqueles que estavam ali antes. Hoje é apenas a pequena parte de um bairro, que compõe uma cidade em constante expansão. Mas aquele ipê, plantado há tantos anos, continuou. E agora que Seu Geraldo não está, ele chora por alguns dias todos os anos, deixando cair suas lágrimas floridas.