Pensamenteando

Modernidade líquida

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Eu a esperava passar por aquela porta escura de madeira todos os dias. Era sempre uma surpresa boa, mesmo que eu já estivesse ali, de olho, fitando com ansiedade as pessoas que entravam no escritório.

A porta maciça não me permitia vislumbrar o outro lado, por isso, de manhã, eu levantava meus olhos cansados, segurando o ar, e dava na cara para a empresa toda quando abriam a porta.

Ela era meu acalanto naquele ambiente maçante. Eu era infeliz, ah, como era; a camisa do uniforme grudava em minha pele como se fosse de plástico, mesmo com o ar-condicionado. A tela do computador, com seus números zombeteiros me criticavam dia após dia, e os outros funcionários (recentemente renomeados para colaboradores) nem me dirigiam a palavra. Mas ela, com seu perfume inconfundível, que eu não sei se imaginava ou se era real, me tirava de mim ao abrir aquela porta, dando um pouquinho de humanidade para o ruído vazio de teclas sendo pressionadas. Um pouquinho de esperança.

Eu não era, é claro, o único que ficava ao seu redor. Vários outros iam ao seu encontro, seja imediatamente, naquela debandada inicial, ou mais discretos, chegando de mansinho, como leoas que rondam a presa, ficando ali, pelo maior tempo possível.

Eu não tinha ciúmes, mas tinha medo de que eles a exaurissem e eu não pudesse ter a chance de sentir o gosto da sua companhia. Medo de que seria tarde demais, e meu dia não teria aquela fagulha de vida que ela me trazia. Ela era meu vício.

E agora que ela foi substituída, que a implacável roda do tempo passou por cima dela nessa empresa, com a desculpa de que uma máquina no andar de baixo é melhor, eu me vejo fazendo planos de ir embora, sentindo falta das suas visitas, sofrendo com a perda nesses dias que se alongam tanto.

Aaaah, minha garrafinha de café, que saudade de ti.