Pensamenteando

Dessas rivalidades do interior

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A Sociedade Tropical Dos Adoradores da Neve estava em euforia.

Finalmente, depois de anos, séculos na verdade, eles poderiam exercitar sua arte. Eram um pequeno grupo de aficcionados que cultuavam a neve e a deusa de branco. Louvavam sua congelante grandeza, sua fria beleza, e seus olhos das cores do oceano Antártico. Eles viam com nostalgia toda aquela história de era do gelo, uma época, diziam, em que o culto a deusa era onipresente.

Eram a chacota do vilarejo, onde alguns poucos missionários tentaram cravar alicerces há muito, muito tempo. Seus encontros se baseavam em juntar grupos de pessoas ao redor de gigantescos cubos de gelo em casas de pedra – idealmente em porões bem arejados –, onde buscavam exprimir dos locais a merecida adoração. A empreitada se provou difícil, já que as histórias que contavam envolviam, em grande parte, o temor a geadas, nevascas e invernos rigorosos, coisas que, por aquelas bandas, eram um tanto raras – para não dizer inexistentes.

Também não foi de grande ajuda o fato de que a única outra sociedade do tipo por ali era a dos adoradores Fátuos do Fogo. Apesar do nome, eles não adoravam o fenômeno do fogo-fátuo – apesar de o acharem intrigante –, os fundadores apenas gostaram da palavra "Fátuo" e em uma coincidência cômica, acharam que ela elevava sua condição social de sociedade CFI (Com Fins Incendiários). E era esse grupo, que costumava usar bastante roupas vermelhas (e algumas vezes, lunetas), que ridicularizava o outro. Até que começou a soar no vilarejo a notícia de que alguém, em algum lugar, havia inventado uma máquina de fazer neve.

O alvoroço tomou os adoradores do gelo de surpresa, mas não da forma como muitos esperavam. Aconteceu uma cisão no grupo não-milenar. Para um dos lados – composto principalmente pelos mais jovens –, parecia que todos os problemas do mundo haviam sido solucionados. Finalmente poderiam adorar sua deusa da forma como ela merecia. Fora-se o tempo de subterfúgios e disfarces, ou aquela dependência boba em "imagine na sua cabeça e vai ser melhor do que neve de verdade". Inovariam na festa de inverno anual sem aqueles inconvenientes turistas que chegavam procurando por "uma tal festa da espuma", e davam tanto o que falar.

Do outro lado, os que se declaravam puristas, achavam aquilo uma barbaridade. Uma invenção de mal gosto, fruto do tempo em que viviam, onde a essência da vida era entregue de forma artificial por máquinas, que, diziam, jamais poderiam chegar perto da beleza de estalactites de gelo se formando acima da cabeça deles – essa parte mais ortodoxa, acreditava que esses cristais gelados traziam mensagens divinas. O ritual consistia em permanecer debaixo da formação, enquanto um segundo adorador subia no telhado para chacoalhar as estruturas. Quando o objeto de adoração finalmente despencava, diziam que trazia consigo uma mensagem divina para aqueles que se esquivavam a tempo. Eram essas pequenas e lindas minúcias, enviadas pela deusa, que faziam tudo aquilo valer a pena. Aquela máquina – que mais parecia um canhão dos tempos das guerras – era horrenda, era… balbúrdia. Nada mais que a mais pura balbúrdia em forma de gastos energéticos.

Foram meses conturbados, até que os dois grupos se encontraram para discutir a questão.

Enquanto os defensores da máquina apontavam os seus benefícios práticos, o outro defendia, que usar neve feita em laboratório para adoração hermética da natureza, era uma calúnia. "SIMPLESMENTE NÃO TEM A MESMA ENERGIA!".

O debate continuou, paradoxalmente, de forma acalorada, mas de nada adiantou.

Um outro grupo de adoradores – dessa vez, os adoradores Fátuos do Fogo – sabotou o canhão que ficou guardado em uma outra sala, porque tudo bem uma divergência religiosa, mas de forma alguma aceitariam perder seu motivo de chacota principal.