Pensamenteando

A inauguração

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Antes de ser a sede do jornal, era um casarão antigo, meio acabado, e ostentava um ar de que o único motivo de sua existência era ser assombrado. Há muito perdera o charme e a imponência dos primeiros dias, quando reinava perante as outras construções menores. Ficou ali por décadas, parecendo um pedaço perdido de algo que se foi e o esqueceu para trás. Alguns diziam que foi a elegância de uma época mais civilizada. Outros, mais pragmáticos, os recursos de uma família em decadência.

Decidiram por demolir-lo. Não se sabe muito bem quem chegou na decisão. O fato é que o edifício foi ao chão, e das suas ruínas ergueu-se um majestoso hotel. Isso, é claro, é uma forma de falar. As ruínas foram trituradas, grande parte removida, e um desfile de grotescas máquinas veio depois. A primeira cavou bem fundo a terra, misturando aquelas camadas vermelhas e marrons. A segunda bateu até não poder mais, fazendo tremer o quarteirão inteiro, rachando os muros dos vizinhos, desprezando o bem estar de todos. Causou o que muitos descreveram como um mini-terremoto, mas ao ir embora, deixou pronto os alicerces do hotel.

Foi a pérola da cidade por muitos anos, mas assim como seu predecessor, sofreu com o tempo. Com uma queda no número de visitantes, foi deixado de lado pela administração, que vivenciou um declínio parecida. Mesmo assim, as pessoas lá de baixo jamais imaginaram que foi o hotel – e não o casarão – que acabou sendo realmente assombrado.

O digníssimo fantasma chegou com toda a pompa, pouco depois da inauguração. Se instalou no sótão, de frente para o museu que todos pensavam ser uma igreja. Era um poeta, guitarrista, alquimista, carteiro, imperador, escravo, filósofo e motorista de aplicativo. Vê-se aí os benefícios da possessão carnal e da imortalidade, que permitem viver várias vidas em uma. Acontece que o declínio da construção afetou também o opulento residente, que vendo o que se desenrolava ao seu redor, acabou por ficar mais consciente sobre a divina comédia humana, onde nada é eterno.

Se tornou jornalista. Usou da sua experiência para colecionar as histórias daqueles que todos ignoravam. Acreditava que eles deveriam ser lembrados, e que só existiam de verdade assim, registrados entre folhas de papel-fantasmagórico até o fim dos tempos.

O sótão então se tornou metade museu, metade registro, metade caixão e metade universo. O espaço extra veio da facilidade com que o hóspede tinha em não se restringir a apenas três dimensões.

E foi assim que o jornal teve seu início no centro de Belo Horizonte.

 

CONTINUA, um dia