Pensamenteando

A dona dos rabanetes

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Um tempo atrás eu estive na Rússia, e certo dia, saí para dar um passeio. Era o casamento de um grande amigo a razão da minha presença naquele país, que mesmo no meio do verão, te joga um dia frio na cara como se fosse um exame surpresa para a prova de inverno.

Não estava em Moscou, tão pouco em São Petersburgo, apesar de ter visitado as duas cidades (que devo dizer, são belíssimas).

Me encontrava em Kursk, uma cidadezinha a sudoeste de Moscou, perto da borda da Ucrânia.

Meu amigo, e sua noiva estavam ocupados com alguma das várias tarefas que precedem o dia do matrimônio. Muitas vezes, eu acompanhava os dois nesse leva-e-trás desordenado. Não que eles precisassem da minha ajuda, mas acho que ofereci uma boa dose de apoio moral quando as coisas deram errado. Ficava ali, no meu cantinho, alguns passos atrás, mãos às costas e um sorriso complacente no rosto. Depois de um tempo, descobri que os russos julgam que uma pessoa que sorri o tempo todo, é idiota, porque ninguém tem motivo para rir à toa.

Isso explica muita coisa.

Fui zanzando pelas ruas da cidadezinha, eu e minhas poucas palavras em russo, tentando entender as fachadas em cirílico como uma criança sendo alfabetizada a base de marretadas de choque cultural. Me alegrava inteiro ao grunhir em voz baixa algo que consegui identificar. Isso provavelmente influenciou minha imagem de idiota.

Acabei chegando perto de um centro comercial onde havia estado antes no meu tour inicial pela cidade. Os centro comerciais na Rússia são curiosissimos: gigantescos, como os outros edifícios, e continuam acompanhando o estilo soviético dos arredores, com cores apagadas e materiais resistentes. Mas a impressão é que perto de serem lançados, provavelmente naquela última reunião de planejamento, alguém lembra que precisam colocar as marcas das lojas na fachada, e daí são feitos diversos letreiros em cores fortes, que são pregados neste pout-purri capitalista sem ordem específica.

Eu não fui até a Rússia para ir em shopping, por isso não entrei, ao invés disso, fui até os fundos do outro quarteirão, onde acreditei ver uma movimentação que reconheci.

Naquela quadra de concreto, cinzenta e irregular, com resquícios de orvalho, diversas barraquinhas de metal, com toldos grossos listrados em branco e verde, criavam um labirinto de especiarias como toda boa feira deve ter.

Me embrenhei por meio dele.

Vendedores é vendedor até na China, por isso, na Rússia também. Lá eles ainda chamam o freguês, enunciam as várias ofertas e qualidade dos produtos, ou pelo menos foi o que imaginei que estavam me falando, com os gestos que pareciam cortados no meio. Uma coisa é certa: a cara feia ao não comprar parece ser universal.

A feira não era muito grande, e eu fui logo me virando para ir embora, porque não queria dar bobeira de acabar trocando olhares com alguém que chegasse ali para puxar uma conversa que eu não poderia retribuir.

Foi quando avistei, do outro lado da rua, uma linha de senhorinhas com caixotes estendidos diante de si, algumas de cócoras e outras sentadas elas mesmas nos próprios caixotes.

Cada uma parecia ser responsável por um produto, por isso as categorizei como Dona Batata, Rabanete, Cebola e Beterraba.

Parado no meu canto, com as mãos no bolso da calça, meu pensamento voou longe, junto com aquele vento frio que soprava, e me lembrei das doninhas lá do bairro, que conheço da vida toda, e que toda quinta-feira fazem fila com seus cestos de vimes com as melhores frutas, verduras e legumes, lá perto de casa. No meu momento de epifania, aquela cena recheada de coincidência me fez entender o quão próximo estávamos, apesar de qualquer diferença.

Decidi que iria comprar alguns rabanetes e levar para a babuska, a avó da noiva do meu amigo, que me disse – por meio da neta que traduziu para o inglê – que fazia uma salada russa ótima, e veja só, salada russa tem rabanete!

Fui me aproximando devagar, acariciando o asfalto até o outro lado. Dei um bom dia sorridente, que era uma das poucas expressões que eu sabia, e em um ímpeto, vendo aqueles olhos da senhora do rabanete – que julguei cheios de empatia –, tentei fazer uma mímica para saber quanto custavam. O rublo é uma dessas moedas antipáticas que funciona à base de centenas. As coisas não custam dois, cinco, ou dez dinheiros, mas duzentos e trinta dois, cento e quarenta e três, ou setenta – preço da cerveja, esse eu decorei.

Ela gesticulava, provavelmente tentando dizer que não entendia o que eu estava mimicando, mas eu não me daria por vencido, e deixando de lado aquela tentativa analógica de comunicação, saquei meu celular, abri o tradutor e já coloquei logo: "quanto custa", que havia deixado salvo nos favoritos. A dona dos rabanetes continuava balançando a cabeça, e as outras ao redor riam da minha tentativa falha de estabelecer comércio internacional.

Por fim, decidi que tentaria algo novo: peguei da minha carteira uma nota de cem rublos, mostrei para a idosa, e meneei a cabeça meio sem jeito em direção aos rabanetes (me falaram que apontar com a mão era falta de educação).

Ela continuava me olhando como se eu fosse louco. Provavelmente cem rublos era pouco, pensei, mas se valia uma cerveja, provavelmente um rabanete eu podia comprar. Ela bufou, amaciou a têmpora e fez que não com a mão direita, enquanto abanava a outra em frente a nota que eu estendia. Se levantou, recitou algo para as demais, jogou os braços para cima enquanto expulsava violentamente o ar do pulmão, e me levou para o outro lado da rua.

Chegando lá, falou algo com o vendedor de uma das barraquinhas, pegou um molho de bonitos rabanetes, que me entregou, tirou a nota da minha mão, passou para o vendedor, que ofereceu algumas moedas, que a dona também me devolveu antes de acenar com o braço e se despedir, dando uma breve corridinha para chegar até suas amigas, que começavam a carregar as caixas para dentro do ônibus.

E eu fiquei ali, com mais uma diferença cultural para a conta e o rosto combinando com meu buquê de rabanetes.